quinta-feira, 4 de março de 2010

Sob a brecha com Clarice

Ele era um rapaz alto. Cabelos cacheados sempre desarrumados. Usava óculos casualmente, mesmo que precisasse deles apenas para a leitura. A barba, sempre por fazer, escondia algumas espinhas que resolveram aparecer no final de sua adolescência. Um tanto magro, vestia-se cuidadosamente, mas de forma bem simples. Olhos castanhos claros, tão claros quanto o que era possível ler neles, a alma.

Hoje ele vestia jeans, um moletom cinza claro por cima da camisa de algodão verde pastel, e calçava um all star também verde. Estava sentado num banco de praça observando a manhã de um dia frio que passava demoradamente.

Ela era uma moça sorridente. Não muito alta e nem muito baixa. Cabelos cacheados sempre presos para trás. Usava óculos para a leitura, embora achasse que tirava o seu charme. A pele muito macia e cuidada com hidratante de maracujá. Tinha um aspecto doce e puro de uma mulher ainda menina. Magra, embora discordasse disso, vestia-se harmoniosamente, de maneira singela, mas sempre muito bem arrumada, o que a deixava ainda mais bonita. No pescoço carregava sempre um escapulário com o intuito de proteção e fé nas suas crenças.

Hoje ela vestia jeans, uma blusa de frio listrada preta e branco por cima de sua camisa de poliéster preta de um desing que combinava com sua personalidade meiga, e calçava um all star branco. Tinha acabado de sair do metrô e iria para o serviço, se não tivesse chegado no local meia-hora mais cedo. Decidiu esperar na praça lendo um de seus livros que sempre carregava consigo na bolsa.

Com as mãos unidas e refugiadas entre os dois joelhos ele sentia as pontas frias dos dedos irem se aquecendo, gradativamente, entre o algodão tingido de sua calça jeans. Umedecia os lábios com saliva, como de costume. O vento frio balançava seus cachos de cabelo castanho claro sobre a testa fria. Ele estava pensativo. Navegando entre o seu mundo paralelo e a realidade, ele pensava nos seus maiores anseios, desejos e perspectivas. No que esperava do mundo, das pessoas e, principalmente, dele mesmo. Taxado de fofo por alguns, romântico por outros, o moço do all star verde sentia, silenciosamente, tudo que o destinava essas denominações. O frio de seu corpo não interferia no calor de sua alma. Envolto de todos os sentimentos puros e pequenos prazeres ele queria um amigo, uma amante, alguém, alguém com quem pudesse repartir o que nele tinha em excesso. Alguém que precisasse rir, alguém para fazê-lo rir. Alguém pra ouvir suas bobagens, alguém para lhe dizer bobagens. Alguém para sentir, alguém que o sentisse. Alguém que ele completasse, alguém que o completasse. Ele só queria alguém, alguém tão puro quanto ele.

Com passos distraídos e sem muita pressa a doce moça caminhava pela praça pensando em todo o seu coração pulsante. Nos amores impossíveis, nos amigos distantes. Pensava nos momentos de alegria que teve e nos momentos de alegria que queria ter. Ela devaneava entre o mais puro e suave sentimento que dominava o seu ser e nunca fora totalmente compartilhado. Com a mão gelada, sagurou firme o escapulário do pescoço e, com toda a fé que tinha dentro de si, desejou que ao menos uma vez pudesse demonstrar e liberar toda a expressão de um sentimento inocente que a sacudia por dentro. Queria alguém, um amigo, um amante, mas um alguém que realmente a deixasse sentir tudo o que sua alma pedia. Ainda caminhando distraída, ela esticou seu braço e cutucou, cautelosamente, a pétala de uma rosa, como se quisesse sentir na forma mais natural que existe a delicadeza que, naquele momento, também dominava o seu ser.

Avistou o banco mais próximo, onde se encontrava um rapaz de cabelos cacheados inteiramente distraído em seus pensamentos. E caminhou em direção ao assento um pouco envergonhada, o que lhe era natural. Ao chegar pediu licença com a voz um pouco tímida para se assentar. Ele, surpreso com a presença dela, voltou subitamente à realidade e acatou o pedido, permitindo-a de se juntar a ele. Começou a observá-la com certa discrição. Viu-a tirar da bolsa um livro velho, provavelmente de sebo. Pensou ser um romance ou livro de contos e pensou em perguntá-la, porém a timidez era a sua pior inimiga. Demorou cerca de dois minutos pra criar coragem e finalmente disse:
- Romance?
- Como? - voltou-se a moça.
- O que você lê, é romance? - disse ainda com muita timidez.
- Ah não! Não é romance! - respondeu a moça um pouco envergonhada - São contos...Clarice, sabe quem né?
- Claro, claro! Adoro Clarice!
- Eu também, não tem como não gostar, acho! - argumentou a moça.
- Concordo! - sorriu o moço.

Ela voltou seus olhos ao livro sem conseguir prestar muita atenção no que lia. Pensava em alguma coisa pra perguntá-lo. Ele fazia o mesmo, fingia estar altamente entretido brincando com os dedos das mãos, mas não parava de observar os sons e o cheiro da bela moça ao seu lado. E, ficando mais corada do que de costume ela lhe disse improvisadamente:
- O dia tá frio hoje, né?!
Ele riu e respondeu:
- Está, mas no exato momento em que você chegou aqui o sol que se escondia entre as nuvens resolveu aparecer, olha!
Observando uma brecha iluminada recém aberta entre as nuvens apontadas pelo rapaz de cachos no cabelo, ela respondeu:
- Nossa! É verdade! Espero que o dia fique bonito, adoro a sensação de céu azul.
- Eu também espero! O céu sempre influenciou no meu humor! Normalmente dias claros me deixam mais alegre.
- Legal a sua relação com o céu - sorriu pra ele.
- Ele é a única coisa igual pra todo mundo que eu tenho certeza de que as pessoas já viram mais de uma vez na vida.
-Sim, ele iguala as pessoas.
-E as aproxima - sorriu.

Ela olhou as horas, estava atrasada para o trabalho. Despediu dele sem nem saber seu nome. Saiu apressada, quase correndo. E no meio da correria, pensava que talvez nunca mais o veria, se sentiu idiota por não ter trocado telefone ou pelo o menos o nome que ela não parava de imaginar. E antes de entrar no prédio do seu serviço, olhou para a brecha que agora mostrava um pedaço azul do céu e concluiu que mesmo sem nunca mais vê-lo, ela teria a certeza de que aquele azul tão igual pra todos era o mesmo azul que ele olhava. Ali ela o encontraria sempre. E, depois desse dia, ela nunca mais olhou pro céu sem pensar nele.

Sentado novamente sozinho no banco, ele a observava sumir por entre as plantas e postes da praça, levando consigo o perfume que ele nunca mais esqueceria. E quando ela finalmente desapareceu, ele olhou para o fundo azul que se formava no céu e sorriu docemente. Sentiu vontade de esticar os braços como a abrir as portas da alma para entrar mais um sentimento, o da esperança. E assim fez. Ficou por segundos com os braços abertos sentindo o frio vento enlaçar o seu corpo. Ao descansar, por fim os braços sobre o redor do banco percebeu que a moça que acabara de sair esquecera o livro de contos da Clarice. Pegou-o e leu curiosamente seu título: "Felicidade Clandestina". Não pensou mais nada, apenas sorriu e sussurou baixinho: Felicidade clandestina...

5 comentários:

  1. Sentir que existe alguém no mundo que também olha para o céu e percebe o mesmo azul, e encontrar brechas na nossa vida que nos fazem pensar em amores de liquidificador...
    Ah, bom, eu aqui com minhas laudas e você com suas mágicas.
    : )

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  2. Ah, meu Carlito! *-*
    Só vc, meu bem!
    Só mesmo a sua alma transparente pra descrever tão bem algo que nós dois desejaríamos que acontecesse.
    Não tive a sorte de sentar ao seu lado, por acaso, em um banco de praça, mas há algum tempo que o céu já não é o mesmo pra mim.
    A moça do conto te tem para sempre dentro dela.

    Eu te amo.

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  3. que lindo... isso acontece as vezes comigo.. isso de conhecer alguém de alguma forma especial e nunca mais voltar a vê-lo...
    é uma sensação de perda e de espectativa... é bom e desolador.

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  4. nossa, que coisa mais tocante. lindo lindo, Carlito!!

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  5. Ô meninas, muito obrigado! :)
    Que bom que gostaram! Foi inspirado num conto do Caio Fernando Abreu. "Sob o céu de Saigon", do livro Ovelhas Negras, enfim... :)
    Obrigado mesmo!

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