terça-feira, 16 de março de 2010

Marcas Refletidas




A mulher estava estática em frente ao espelho. Analisava o seu rosto que há muito não reparava com afinco. Fios brancos e grossos haviam desabrochados no meio de seus sedosos cabelos negros. A pele que sempre foi maica e enrijecida, de tal forma que destacasse suas feições delicadas como um pêssego maduro, hoje pareciam escamas, rude e com grandes rugas que lhe deformavam as expressões. Olhou as mãos. Aquelas que, no passado, ao tocar as flores transmitiam-lhes mais beleza e perfume, agora, com o peso da idade, se tornaram frias e secas como galhos retorcidos de uma árvore do cerrado.

Ela não tinha mais aquele brilho no olhar que traduzia todos os sonhos de uma jovem mulher que fantasia amores, inventa segredos e colore alegrias. Seus olhos, agora, eram opacos e dissimulados, cercados por uma imensa olheira que lhe dava todo um aspecto frio, rude e sombrio de uma velha senhora sem sonhos, que vivia pacatamente à espera do dia em que, enfim, descansaria em paz.

-Em que espelho ficou perdida a minha face? - repetia sem parar ao não se reconhecer no vidro espelhado que encarava - Qual espelho? Com certeza não é esse!


Uma lágrima quente e ácida percorreu o seu rosto quando ela concluiu que o seu eu de antigamente ficou aprisionado no espelho do passado, da metamorfose, pois agora ela mudara. Só refletia o amargo, reflexo, esse, da desilusão que sua vida se tornara.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Sob a brecha com Clarice

Ele era um rapaz alto. Cabelos cacheados sempre desarrumados. Usava óculos casualmente, mesmo que precisasse deles apenas para a leitura. A barba, sempre por fazer, escondia algumas espinhas que resolveram aparecer no final de sua adolescência. Um tanto magro, vestia-se cuidadosamente, mas de forma bem simples. Olhos castanhos claros, tão claros quanto o que era possível ler neles, a alma.

Hoje ele vestia jeans, um moletom cinza claro por cima da camisa de algodão verde pastel, e calçava um all star também verde. Estava sentado num banco de praça observando a manhã de um dia frio que passava demoradamente.

Ela era uma moça sorridente. Não muito alta e nem muito baixa. Cabelos cacheados sempre presos para trás. Usava óculos para a leitura, embora achasse que tirava o seu charme. A pele muito macia e cuidada com hidratante de maracujá. Tinha um aspecto doce e puro de uma mulher ainda menina. Magra, embora discordasse disso, vestia-se harmoniosamente, de maneira singela, mas sempre muito bem arrumada, o que a deixava ainda mais bonita. No pescoço carregava sempre um escapulário com o intuito de proteção e fé nas suas crenças.

Hoje ela vestia jeans, uma blusa de frio listrada preta e branco por cima de sua camisa de poliéster preta de um desing que combinava com sua personalidade meiga, e calçava um all star branco. Tinha acabado de sair do metrô e iria para o serviço, se não tivesse chegado no local meia-hora mais cedo. Decidiu esperar na praça lendo um de seus livros que sempre carregava consigo na bolsa.

Com as mãos unidas e refugiadas entre os dois joelhos ele sentia as pontas frias dos dedos irem se aquecendo, gradativamente, entre o algodão tingido de sua calça jeans. Umedecia os lábios com saliva, como de costume. O vento frio balançava seus cachos de cabelo castanho claro sobre a testa fria. Ele estava pensativo. Navegando entre o seu mundo paralelo e a realidade, ele pensava nos seus maiores anseios, desejos e perspectivas. No que esperava do mundo, das pessoas e, principalmente, dele mesmo. Taxado de fofo por alguns, romântico por outros, o moço do all star verde sentia, silenciosamente, tudo que o destinava essas denominações. O frio de seu corpo não interferia no calor de sua alma. Envolto de todos os sentimentos puros e pequenos prazeres ele queria um amigo, uma amante, alguém, alguém com quem pudesse repartir o que nele tinha em excesso. Alguém que precisasse rir, alguém para fazê-lo rir. Alguém pra ouvir suas bobagens, alguém para lhe dizer bobagens. Alguém para sentir, alguém que o sentisse. Alguém que ele completasse, alguém que o completasse. Ele só queria alguém, alguém tão puro quanto ele.

Com passos distraídos e sem muita pressa a doce moça caminhava pela praça pensando em todo o seu coração pulsante. Nos amores impossíveis, nos amigos distantes. Pensava nos momentos de alegria que teve e nos momentos de alegria que queria ter. Ela devaneava entre o mais puro e suave sentimento que dominava o seu ser e nunca fora totalmente compartilhado. Com a mão gelada, sagurou firme o escapulário do pescoço e, com toda a fé que tinha dentro de si, desejou que ao menos uma vez pudesse demonstrar e liberar toda a expressão de um sentimento inocente que a sacudia por dentro. Queria alguém, um amigo, um amante, mas um alguém que realmente a deixasse sentir tudo o que sua alma pedia. Ainda caminhando distraída, ela esticou seu braço e cutucou, cautelosamente, a pétala de uma rosa, como se quisesse sentir na forma mais natural que existe a delicadeza que, naquele momento, também dominava o seu ser.

Avistou o banco mais próximo, onde se encontrava um rapaz de cabelos cacheados inteiramente distraído em seus pensamentos. E caminhou em direção ao assento um pouco envergonhada, o que lhe era natural. Ao chegar pediu licença com a voz um pouco tímida para se assentar. Ele, surpreso com a presença dela, voltou subitamente à realidade e acatou o pedido, permitindo-a de se juntar a ele. Começou a observá-la com certa discrição. Viu-a tirar da bolsa um livro velho, provavelmente de sebo. Pensou ser um romance ou livro de contos e pensou em perguntá-la, porém a timidez era a sua pior inimiga. Demorou cerca de dois minutos pra criar coragem e finalmente disse:
- Romance?
- Como? - voltou-se a moça.
- O que você lê, é romance? - disse ainda com muita timidez.
- Ah não! Não é romance! - respondeu a moça um pouco envergonhada - São contos...Clarice, sabe quem né?
- Claro, claro! Adoro Clarice!
- Eu também, não tem como não gostar, acho! - argumentou a moça.
- Concordo! - sorriu o moço.

Ela voltou seus olhos ao livro sem conseguir prestar muita atenção no que lia. Pensava em alguma coisa pra perguntá-lo. Ele fazia o mesmo, fingia estar altamente entretido brincando com os dedos das mãos, mas não parava de observar os sons e o cheiro da bela moça ao seu lado. E, ficando mais corada do que de costume ela lhe disse improvisadamente:
- O dia tá frio hoje, né?!
Ele riu e respondeu:
- Está, mas no exato momento em que você chegou aqui o sol que se escondia entre as nuvens resolveu aparecer, olha!
Observando uma brecha iluminada recém aberta entre as nuvens apontadas pelo rapaz de cachos no cabelo, ela respondeu:
- Nossa! É verdade! Espero que o dia fique bonito, adoro a sensação de céu azul.
- Eu também espero! O céu sempre influenciou no meu humor! Normalmente dias claros me deixam mais alegre.
- Legal a sua relação com o céu - sorriu pra ele.
- Ele é a única coisa igual pra todo mundo que eu tenho certeza de que as pessoas já viram mais de uma vez na vida.
-Sim, ele iguala as pessoas.
-E as aproxima - sorriu.

Ela olhou as horas, estava atrasada para o trabalho. Despediu dele sem nem saber seu nome. Saiu apressada, quase correndo. E no meio da correria, pensava que talvez nunca mais o veria, se sentiu idiota por não ter trocado telefone ou pelo o menos o nome que ela não parava de imaginar. E antes de entrar no prédio do seu serviço, olhou para a brecha que agora mostrava um pedaço azul do céu e concluiu que mesmo sem nunca mais vê-lo, ela teria a certeza de que aquele azul tão igual pra todos era o mesmo azul que ele olhava. Ali ela o encontraria sempre. E, depois desse dia, ela nunca mais olhou pro céu sem pensar nele.

Sentado novamente sozinho no banco, ele a observava sumir por entre as plantas e postes da praça, levando consigo o perfume que ele nunca mais esqueceria. E quando ela finalmente desapareceu, ele olhou para o fundo azul que se formava no céu e sorriu docemente. Sentiu vontade de esticar os braços como a abrir as portas da alma para entrar mais um sentimento, o da esperança. E assim fez. Ficou por segundos com os braços abertos sentindo o frio vento enlaçar o seu corpo. Ao descansar, por fim os braços sobre o redor do banco percebeu que a moça que acabara de sair esquecera o livro de contos da Clarice. Pegou-o e leu curiosamente seu título: "Felicidade Clandestina". Não pensou mais nada, apenas sorriu e sussurou baixinho: Felicidade clandestina...